Publicado em: 27/01/2017
A região do ABC Paulista terá o primeiro Centro de Referência de Doenças Raras do Estado de São Paulo. O projeto desenvolvido pela Faculdade de Medicina do ABC, em Santo André, foi aprovado em meados de 2016 pelo Governo do Estado e o serviço acaba de ser credenciado pelo Ministério da Saúde. Trata-se de trabalho pioneiro, com atendimento 100% gratuito e que busca oferecer em um único espaço diversos especialistas, exames específicos e trabalho multidisciplinar para o atendimento integral a pacientes com as mais diversas patologias raras. A marcação de consultas já está aberta aos interessados, que podem obter mais informações pelo telefone (11) 4433-2846.
Segundo definição da Organização Mundial da Saúde, a doença rara caracteriza-se como aquela que afeta até 65 pessoas a cada 100.000 indivíduos – ou seja, 1,3 pessoa num grupo de 2.000. O problema atinge aproximadamente 5% da população, comprometendo milhões de pessoas ao redor do mundo. Estima-se que 80% dos casos têm origem genética e 50% afetam crianças – sendo que 30% morrem antes dos 5 anos de idade. Até o momento, cerca de 7.000 doenças raras já foram identificadas, cujas características principais são a natureza complexa, a evolução crônica e debilitante. Essas particularidades, associadas ao acesso limitado aos tratamentos e serviços especializados, têm grande repercussão no cotidiano de milhões de famílias.
Nesse sentido, o Centro de Referência de Doenças Raras da Faculdade de Medicina do ABC tem como objetivo, justamente, organizar o atendimento de pacientes suspeitos ou portadores das enfermidades, a fim de melhorar o acesso ao diagnóstico e às terapias necessárias. “Há muitos anos as disciplinas da FMABC realizam atividades isoladas no campo das doenças raras, que envolvem o ensino, a pesquisa e a assistência. Em meados de 2014, criamos o Grupo de Atenção Integral à Doenças Raras, com objetivo de reunir todos os profissionais da faculdade que, de alguma forma, estavam atuando nessa área. Foi o embrião do centro de referência, quando começamos a estruturar o projeto”, recorda o professor titular da disciplina de Saúde Sexual, Reprodutiva e Genética Populacional da Faculdade de Medicina do ABC, Dr. Caio Parente Barbosa.
Até o credenciamento do Centro de Referência de Doenças Raras pelo Ministério da Saúde, os atendimentos nessa área realizados pela FMABC eram limitados, pois dependiam da verba do Sistema Único de Saúde (SUS) contratualizada com a FMABC via município de Santo André. Entretanto, esse recurso não é específico para a área de doenças raras, mas contempla todas as atividades assistenciais desenvolvidas nos ambulatórios da faculdade.
“A partir de agora, pacientes com doenças raras serão atendidos sem que os recursos necessários para essa assistência estejam vinculados ao teto que o SUS determina para o ambulatório da FMABC. Os tratamentos e exames em doenças raras passam a ter financiamento próprio, com verba direta do Ministério da Saúde para essa finalidade – via Fundo de Ações Estratégicas e de Compensação (FAEC) –, o que permitirá ampliar sobremaneira nossa capacidade de atendimento e o número de famílias beneficiadas”, garante Dr. Caio Parente Barbosa.
Para o diretor da FMABC, Dr. Adilson Casemiro Pires, o credenciamento representa importante passo na história de quase 50 anos da Faculdade de Medicina do ABC: “Somos pioneiros em uma área que tende a crescer muito nos próximos anos e que deve se organizar em forma de uma rede integrada de atenção. Estamos em sintonia com a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, em busca de oferecer em um único espaço diversos especialistas e atendimento integral a pacientes com doenças raras”, completa Pires.
REDE DE ATENÇÃO
Lançada em 2014 pelo Ministério da Saúde, a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras organiza o cuidado dos pacientes em dois eixos. O primeiro reúne as patologias de origem genética e inclui as anomalias congênitas ou de manifestação tardia, deficiência intelectual e os erros inatos do metabolismo. O segundo eixo é composto por doenças raras de origem não genética: infecciosas, inflamatórias e autoimunes.
“São milhares de tipos de exames e procedimentos que podem ser necessários quando falamos em doenças raras e a demanda não justifica a manutenção de serviços assim em cada cidade. O custo seria inviável para qualquer prefeitura ou para o Governo do Estado. Na Faculdade de Medicina do ABC, por exemplo, já contamos com atendimento multidisciplinar e diversos tipos de exames estão disponíveis. Mas é impossível oferecer todos os atendimentos que podem ser necessários para contemplar as cerca de 7.000 doenças raras conhecidas”, afirma Barbosa.
Frente à grande variedade de doenças raras e à necessidade de tratamentos personalizados para cada paciente, a tendência é de que o Estado de São Paulo constitua uma rede de atenção com diversos centros de referência, cada um com atendimento específico em determinada área. “A ideia é otimizar ao máximo cada serviço e ampliar o alcance, a fim de democratizar o atendimento. Nesse sentido, a rede de atenção é fundamental, pois distribui as doenças raras, os exames e procedimentos em centros de referência diferentes uns dos outros e específicos dentro das muitas linhas de atendimentos”, acrescenta o professor da FMABC, que detalha: “Pacientes do ABC Paulista poderão realizar o acompanhamento perto de casa, na Faculdade de Medicina do ABC, e fazer um ou outro exame específico num centro de referência diferente. O que ocorre hoje ainda é uma peregrinação por atendimento, com dificuldades para encontrar profissionais capacitados nas doenças raras e locais que possam realizar os procedimentos e exames necessários, muitos dos quais de alto custo”.
Até o credenciamento como Centro de Referência de Doenças Raras, a FMABC recebia somente casos referenciados encaminhados por Santo André. A partir de agora, esses pacientes podem chegar a partir de diversos serviços e localidades. “Temos estrutura na FMABC para atender a cerca de 70% das doenças raras, com destaque paras as áreas de erros inatos do metabolismo, doenças raras imunológicas, fibrose cística e doenças neuromusculares”, enumera a professora de Genética da FMABC, Dra. Bianca Alves Vieira Bianco, que acrescenta: “Também faremos o acolhimento e orientação das famílias, inclusive com exames genéticos para aconselhamento sexual, tendo em vista que 80% das doenças raras são de origem genética e algumas podem ser recorrentes em determinados casais”.
Como contrapartida pelo atendimento especializado do centro de referência, a FMABC passará a receber R$ 42.000 mensais do Ministério da Saúde como ajuda de custo. Dessa forma, poderá ampliar projetos de pesquisa e estudos na área, além de aprimorar o ensino de alunos de graduação e pós-graduação e de investir na capacitação dos profissionais vinculados ao projeto.
ROTINA DE PEREGRINAÇÃO E TRATAMENTO DE R$ 720 MIL
A complexidade diagnóstica das doenças raras faz com que muitas vezes os pacientes passem por diversos especialistas e realizem dezenas de exames de alto custo sem obter diagnóstico e tratamento adequados. É o caso do pequeno Gustavo Barbosa de Lima, andreense de 10 anos de idade, que desde os 4 anos luta por atendimento adequado contra a distrofia muscular de Duchenne. “Com cerca de 4 anos, o Gustavo começou a andar na ponta dos pés e a cair muito. Passamos por diversos médicos, serviços e exames, mas somente quando ele tinha 6 anos é que foi realizado o primeiro exame genético. Com o resultado, fomos encaminhados para a USP, onde foi feita a biópsia muscular e, finalmente, o diagnóstico de distrofia muscular de Duchenne”, recorda a mãe, Luciana Barbosa de Lima.
A distrofia muscular de Duchenne é uma doença grave, de caráter progressivo e que se inicia na infância. O prognóstico e a qualidade de vida do paciente podem ser melhorados significativamente com diagnóstico precoce. O sintoma principal é a criança cair muito, o que faz com que seja taxada de estabanada e preguiçosa. “Há cerca de 15 anos, a sobrevida de um paciente com distrofia de Duchenne não passava de 18 anos. Hoje, com os cuidados, terapias e medicações disponíveis, esses pacientes chegam tranquilamente aos 40 anos”, garante a neurologista da FMABC, Dra. Alzira Alves de Siqueira Carvalho.
Todo o tratamento de Gustavo seguiu na USP, na Capital paulista, até 2014, quando a mãe ficou sabendo, por acaso, que a Faculdade de Medicina do ABC também realiza este serviço. “Somos de Santo André e chegávamos a levar 3 horas para ir até a USP. Fazer o tratamento aqui no ABC facilitou muito”, assegura a mãe.
Com a demora de 2 anos até o diagnóstico, a doença avançou e hoje Gustavo não consegue mais andar sozinho, mas somente com a ajuda de terceiros. Entretanto, o pequeno iniciou em meados de julho de 2016 tratamento com uma nova medicação, o Ataluren, e a expectativa de melhora é grande. Trata-se de droga aprovada no final de 2015 na Europa, ainda indisponível no Brasil. “Foi uma luta, pois é um medicamento de alto custo e só conseguimos via decisão judicial. Tivemos até que ir a Brasília passar por perícia a pedido do juiz. Quando recebemos o medicamento, a nota fiscal do tratamento de 6 meses era de R$ 720.000,00”, conta Luciana Barbosa de Lima.
Segundo a Dra. Alzira Alves de Siqueira Carvalho, o Ataluren não é indicado para todos os casos de distrofia muscular de Duchenne, mas apenas para cerca de 13% a 15% dos pacientes – como é o caso de Gustavo. Enquanto a doença impede a produção de um tipo de proteína pelo organismo, a medicação “engana” o DNA e permite a formação dessa proteína. “Apesar da proteína produzida ser defeituosa, ela é muito melhor para o organismo do que quando não havia proteína nenhuma”, afirma Dra. Alzira.
Para identificação dos casos que podem se beneficiar com a droga é necessário realizar sequenciamento do gene – exame que também é feito na FMABC, a partir de sequenciador de última geração. “Trata-se de exame que precisa ser realizado em todos os pacientes com distrofia muscular de Duchenne, pois outras drogas que já estão sendo liberadas nos Estados Unidos e Europa também têm um alvo específico e serão úteis para uma outra porcentagem de doentes”, completa Dr. David Feder, professor titular de Farmacologia.